2021 foi um ano complexo para a Violência em Portugal e não só. Foi um dos piores anos em Portugal, em termos de estatística de violência interpessoal, com mais mortes, mais casos de agressão e mais crimes violentos. A pandemia do COVID-19 e os confinamentos aumentaram o tempo de contacto entre vítimas e agressores, dificultando os pedidos de ajuda, quer a forças policiais, quer a serviços de saúde. As vítimas recorreram menos do que em anos anteriores à pandemia, como em 2018 e 2019.
Durante a pandemia de COVID-19, houve a preocupação dos serviços em geral para evitar a presença de pessoas externas, o máximo possível. No caso dos serviços de saúde de obstetrícia, os pais foram impedidos de entrar e apoiar as parturientes e companheiras, excluindo-os do processo de nascimento da sua família.
Em termos de violência obstétrica (VO), esta é entendida como a apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos Profissionais de Saúde, que se expressa num tratamento desumanizado e excesso de medicalização, levando à perda de autonomia e capacidade decisória das mulheres sobre os seus corpos e sexualidade. A VO é a violência que ocorre contra mulheres nos serviços de saúde em contexto de maternidade e pós-parto, cuidados durante as perdas gestacionais e cuidados de ginecologia.
De acordo com um questionário online elaborado pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) “Experiências de Parto em Portugal”, em média, 30% das inquiridas sentiu situações de desrespeito, abuso ou discriminação que influenciaram a sua experiência de parto e afetaram a sua vida. Este questionário de 21 questões foi feito de 2015 a 2019 e foi respondido por 7555 parturientes. A idade média das mulheres foi de 33 anos e, na sua maioria (82,83%), foram atendidas em hospitais públicos. Apenas 18,5% considerou que o que tinha idealizado para o seu parto foi respeitado. O direito a acompanhantes apenas não se verificou em 18% das inquiridas. Após o parto, 44,7% das inquiridas sentem que falharam ou arrependem-se de como o parto decorreu, e quanto menos satisfeitas com a sua experiência de parto, mais assustadas ficam com a ideia de voltarem a ser mães.
Na prática, a VO engloba, de acordo com Browser e Hill, Harvard Nacional School of Public Health, 2010, abusos físicos, cuidados não consentidos, cuidados não confidenciais, cuidados não dignificantes, discriminação baseada em atributos, abandono ou recusa de cuidados e detenção da mulher na instituição contra a própria vontade.
A VO inclui-se em maus-tratos nos cuidados de saúde, de acordo com BOHREN et al, (2015), The Mistreatment of Women during Childbirth in Health Facilities Globally: A Mixed-Methods Systematic Review, nomeadamente como o abuso físico, sexual e verbal, o estigma e discriminação, não corresponder a padrões de cuidado profissionais, relação deficiente entre mulheres e prestadores de cuidados; e condições e constrangimentos do sistema de saúde.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a VO é considerada uma violência de género contra as mulheres. Em termos práticos, pode manifestar-se nos vários comportamentos relacionados com a prática clínica. Tem ainda consequências físicas, psicológicas, económicas e socioculturais. Em termos de consequências físicas, podem ocorrer com os processos de episiotomia e episiorrafias as complicações infecciosas, sépsis e lacerações.
A episiotomia é um procedimento médico executado durante o parto que permite aumentar o diâmetro de saída do canal de parto. Esta realidade poderá, teoricamente, prevenir lacerações perineais, permitir um processo de reparação e cicatrização mais fácil, preservar o suporte muscular do pavimento pélvico, reduzir o traumatismo neonatal e ajudar na extração fetal mais rápida. Existem 3 tipos principais: médio-lateral, mediana e outros (lateral, em J, em T).
Os riscos de intervir no canal de parto com episiotomias são: alargar a extensão da incisão, aumentar a hemorragia e a dor pós-parto, provocar disfunção sexual, infeção e deiscência da sutura, com possível aumento do risco de laceração perineal em partos futuros; e um resultado anatómico não satisfatório para a mulher.
As lacerações podem ser de vários graus, de acordo com a profundidade e número de camadas de tecidos afectados:
- Grau 1 – pele, tecido celular subcutâneo, epitélio vaginal;
- Grau 2 – fáscia e músculos do períneo;
- Grau 3 – esfíncter anal: 3a – < 50% EAE ;3b – > 50% EAE 3c – EAI (para além de rutura completa do EAE);
- Grau 4 – mucosa rectal.
Em termos físicos, os resultados a longo prazo podem ser alterações musculares do períneo, incontinência fecal e urinária, aumento do risco de rutura uterina, vesical ou intestinal em partos ou intervenções cirúrgicas abdominais posteriores. Muitos destes processos terão de ser operados e reconstruídos ou submetidos a reabilitação do pavimento pélvico, uma forma de fisioterapia localizada.
Em termos psicológicos, podem existir consequências para a mãe, para o pai, para o bebé, para a família e para a sociedade em geral. Podem surgir patologias como depressão, ansiedade generalizada, processos fóbicos e perturbação de stress pós-traumático.
Em termos económicos, pode persistir a dificuldade da família, ou na maioria dos casos das mulheres, em retomar a sua atividade profissional por motivo de doença, ausências ao trabalho, dificuldade em ter acesso a cuidados de saúde reabilitadores da saúde da mulher como a fisioterapia, cirurgias, psicologia, entre outros.
Em termos socioculturais, a mãe pode ter dificuldade em ajustar-se ao seu novo papel como mãe, em instituir e manter a amamentação e em estabelecer vínculo afetivo com a criança, quanto à sua auto-estima, relação com o seu corpo que mudou, a relação com seu/sua parceiro/a, a sua ligação com o bebé e a vontade de ter mais filhos.
Um termo mais abrangente para VO, e que ainda está em discussão, é Violência Ginecológica e Obstétrica, que foi discutida na Resolução 2306/2019, de 3 de outubro do Conselho da Europa. Atualmente, é uma realidade não existir tutela específica para esta forma de violência, nem o seu reconhecimento. No entanto, são situações pouco expressivas em Portugal, existindo problemas de recolha de provas, visto que pode pôr em causa a privacidade, intimidade da mulher e o sigilo médico. A situação do direito português mantém-se neutra, não existindo ainda uma definição nem médica, nem legal para a situação.
De acordo com a legislação portuguesa, toda a mulher tem direito a:
- Direito à privacidade e confidencialidade – 15.º A, n.º 1, b);
- Direito à assistência contínua – 15.º G e 18, n.º 2;
- Direito ao tratamento condigno e respeitoso (livre de coação, violência e sem discriminação, direito a um parto humanizado) – 15.º A, n.º 1, c), d), e);
- Direito a um intérprete se necessário – 15.º C, n.º 3;
- Direito à informação, recusa e consentimento informado – 15.º A, n.º 1, a)
- Direito à liberdade/autonomia – 15.º A, n.º 1, g);
- Direito aos melhores cuidados de saúde – conforme a MBE e Recomendações da OMS – 15.º A, n.º 1, f) e art. 15.º F, n.º 2 e 6;
- Direito à amamentação – 15.º H;
- Direito ao alívio da dor – 15.º F, n.º 4;
- Direito à mínima interferência – 15.º F, n.º 2 e 6;
- Outros direitos na qualidade de utente: direito de associação, acesso a cuidados de saúde, fazer reclamações/queixas e responsabilização.
Embora a situação ainda esteja nos termos descritos, em Portugal assistimos a uma grande discussão pública sobre o tema de violência obstétrica nos últimos meses de 2021 que, pela primeira vez, abarcou várias esferas da vida pública: políticos, meios de comunicação social, Profissionais de Saúde e sociedade civil.
Enquanto ativista que colabora na APDMGP, médica e mãe, sinto que poderá ser um caminho importante para criarmos pontes, dinamizar centros de excelência para práticas mais próximas das mulheres e com os seus direitos respeitados.
A Dra. Lara Domingues Diogo
Médica Especialista em Medicina Geral e da Família