A Fibrose Quística (FQ) é uma doença genética rara em que há alteração do gene CFTR, responsável pela codificação da proteína com o mesmo nome, estando localizada nas células de vários órgãos. Está descrita desde 1930 e em 1989 foi descoberto o gene responsável. Estão identificados em Portugal cerca de 400 doentes para 75 000 a nível mundial, estimando-se uma prevalência de 1:8 000.
Até à data, há cerca de 2107 mutações descritas, das quais poucas têm expressão clínica identificada (20 a 25), sendo a maioria muito raras. A mutação F508del é a mais frequente (90% dos doentes). A expressão clínica varia (grave versus ligeira) dependendo das mutações CFTR, de genes modificadores e de fatores ambientais.
A associação de sintomas respiratórios e gastrointestinais ou infertilidade masculina, ou pancreatites recorrentes pode levar à suspeita clínica. Estes doentes têm secreções brônquicas abundantes, espessas, difíceis de mobilizar, ficando retidas nas vias aéreas, facilitando o crescimento de microrganismos e provocando infeções respiratórias de repetição com a consequente destruição pulmonar, sendo esta a principal causa de morbilidade e mortalidade. O envolvimento gastrointestinal condiciona síndromes de má absorção com desnutrição, atraso do crescimento e episódios de oclusão intestinal. Pode haver também envolvimento hepático grave.
O tratamento inclui fármacos inalados fluidificantes das secreções, cinesiterapia respiratória, antibioterapia inalada e sistémica, enzimas pancreáticos, vitaminas lipossolúveis e insulina nos casos de diabetes associada. A doença pode progredir e ser necessário oxigenioterapia ou ventiloterapia domiciliária e transplante pulmonar. A sobrevida pós transplante é boa e a qualidade de vida melhora, embora surjam outras limitações resultantes da terapêutica imunossupressora.
Existem presentemente novas terapêuticas que corrigem o defeito da proteína (moduladores da CFTR), que vieram melhorar a qualidade de vida, e provavelmente a sobrevida, e modificaram o paradigma de tratamento, passando do tratamento dos sintomas para correção do defeito que os provoca. A terapêutica genética tem sido difícil de implementar porque é difícil chegar ao gene e corrigi-lo, sendo mais fácil corrigir o defeito da proteína.
Em 2012 surgiu o primeiro fármaco dirigido a mutações raríssimas (1 %). Teve muito sucesso mas não tratava doentes com a mutação mais frequente (F508del). Em 2015, surgiu outro fármaco para homozigóticos F508del, mas que teve resultados clínicos muito inferiores e, em 2018, outro fármaco ainda, para doentes com apenas uma mutação F508del, demonstrou igual eficácia, mas menos efeitos adversos e interações medicamentosas. O mais recente, para doentes com pelo menos uma mutação F508del, revelou-se mais eficaz, reduzindo muito os sintomas e permitindo significativa recuperação da função pulmonar. Foi possível transformar a FQ, numa doença crónica com uma sobrevida cada vez maior e manejável com terapêutica oral de fácil adesão.
Nos anos 90, percebeu-se que os doentes seguidos em centros especializados tinham uma evolução muito melhor e, por isso, assumiu-se que o seguimento devia ser feito onde se concentrassem os recursos especializados para diagnóstico e tratamento. Até aos 18 anos, o seguimento por pediatras, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais e nutricionistas é feito no centro pediátrico, seguindo-se a transição para os cuidados de adultos de forma gradual, através de programas em que as duas equipas (pediátrica e de adultos) vão trabalhar em conjunto até que o doente e família estejam preparados para a transição.
O diagnóstico assenta no rastreio neonatal e os casos identificados são encaminhados para exames de confirmação. A correção do defeito de base associada ao diagnóstico precoce por rastreio neonatal e o seguimento em centros especializados tornou possível iniciar um tratamento muito eficaz antes de existirem alterações irreversíveis aumentando a sobrevida e melhorando a qualidade de vida. Como a doença não depende apenas do genótipo CFTR, mas também de genes modificadores e de fatores ambientais, a resposta à terapêutica moduladora da proteína é variável e, por isso, é importante a colaboração com a Ciência Básica para se identificar ex vivo os doentes potencialmente respondedores. Ainda não temos tratamento para doentes com mutações raras, mas a investigação prossegue.
Em Portugal temos, desde 2018, o rastreio neonatal incluído no Rastreio Nacional vulgarmente conhecido como “teste do pezinho”, tendo começado como projeto piloto em 2013. Pessoas nascidas antes de 2013 podem não estar diagnosticadas, sobretudo se tiverem formas atípicas da doença. Face à suspeita clínica, são realizados exames de diagnóstico como a prova de suor e o estudo genético. Quando a dúvida prevalece recorre-se a métodos para estudar a função da proteína no epitélio nasal ou na mucosa retal.
Temos no País 5 centros de referência reconhecidos pela Direção-Geral da Saúde (DGS), estando um deles integrado na Rede Europeia de Centros de Referência nesta área e na Rede Europeia de Ensaios Clínicos. Todos incluem os dados dos doentes num registo europeu que permite armazenar informação sobre a doença e comparar os resultados com outros países. Portugal dispõe de novas terapêuticas moduladoras aprovadas com um centro de transplante pulmonar com resultados equiparáveis a qualquer centro europeu com um número significativo de doentes com FQ transplantados.
O investimento no tratamento desta doença prossegue num horizonte muito promissor.
A Dra. Pilar Azevedo
Pneumologista do Centro de Referência em
Fibrose Quística do Hospital de Santa Maria
Testemunho – Viver com Fibrose Quística
O meu nome é Beatriz, tenho 26 anos e tenho Fibrose Quística.
Fui diagnosticada com 2 anos e meio, mas até isso acontecer foi muito complicado. Comecei muito cedo a ter muitos sintomas, fazia muitas infecções respiratórias, o que levou a que tivesse sucessivos internamentos hospitalares. Tenho uma insuficiência pancreática muito elevada, o que fez com que na altura não conseguisse ganhar peso como um bebé normal. Foi bastante complicado obter um diagnóstico pela doença ser rara.
Após o diagnóstico começaram os tratamentos e a medicação. A minha família teve de fazer toda uma adaptação e criar rotinas rigorosas para que nada falhasse. Para mim, isto sempre foi tudo muito normal, porque comecei cedo todas as terapêuticas e rotinas.
Tenho uma bactéria pulmonar muito resistente desde sempre e até aos 6 anos tive muitos internamentos com necessidade de antibiótico endovenoso. Depois disso, tive a sorte de não ter crises até aos 18 anos. No entanto, depois dessa altura foram surgindo alguns internamentos.
Com o início da pandemia, vi-me obrigada a isolar-me e fui forçada a deixar o meu emprego. Com o aparecimento do Kaftrio as coisas voltaram a mudar. Melhorei muito a parte respiratória, mas ganhei muito peso e passei a ter depressão, o que fez com que o meu dia a dia se tornasse ainda mais difícil. Sempre fui uma pessoa positiva, portanto, não era de todo normal o que se estava a passar.
No meio da depressão consegui ir buscar forças para me reerguer de novo. Estar parada não era opção. Mudei a minha alimentação, perdi o peso necessário, comecei a trabalhar na área que gosto e tudo mudou. Sempre fiz uma vida normal, tentando cumprir tudo o que me era imposto pelos médicos para garantir a minha saúde. Apesar da doença, brinquei, estudei, trabalhei, viajei e continuo a fazê-lo.
Hoje em dia partilho na minha página como é viver com Fibrose Quística, para que outros doentes se inspirem e não se sintam sozinhos nesta luta.
Beatriz Carvalho